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Bernoldi revela que 'escondeu' coma para não perder chance de ir para a F1

Piloto curitibano sofreu acidente de trânsito em 1997 e teve dificuldades para retomar boa forma nas pistas

Enrique Bernoldi

Foto de: DPPI

Brasileiro que passou pela Fórmula 1 nas temporadas 2001 e 2002 com a Arrows, Enrique Bernoldi deu entrevista exclusiva ao Motorsport.com via live de Instagram e abriu o jogo sobre um dos momentos mais importantes de sua carreira. O episódio ocorreu em março de 1997, quando o piloto sofreu acidente de trânsito e ficou em coma por três dias. Para não dar adeus ao sonho de chegar à F1, o curitibano escondeu o incidente de sua equipe.

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"Foi uma situação bem complicada, porque eu não podia falar para a equipe o que tinha acontecido", revelou Bernoldi, que estava na Fórmula 3 Inglesa com o time oficial da Renault. Para justificar sua ausência nas corridas seguintes, o piloto brasileiro disse que tinha caído de um cavalo e machucado o braço. Na volta às pistas, porém, a agonia continuou: "Eu estava muito ruim, então fiquei andando mal por vários meses, tomando medicamento".

O curitibano só voltou a ter um bom desempenho depois que parou de tomar remédios, mas o caminho para a F1 não foi fácil. É o que Bernoldi relata na imperdível entrevista abaixo. Confira no vídeo exclusivo:

Quando chamou a atenção da F1?

"Eu acho que essa fisgada (de entrar no radar da F1) foi quando eu corri na Fórmula Renault (1996). O campeonato eram 11 provas e ganhei nove. Nas outras duas meu carro quebrou. O campeonato era bom, com muita gente boa, e eu ganhei nove corridas. Eu acho que foi um ano que eu dominei. Então eu acho que esse ano foi o ano que realmente abriu muita porta. No fim desse ano, eu lembro que eu tinha oferta de contrato para entrar na equipe júnior da Benetton."

Após o título da F-Renault, Bernoldi conversou com a equipe de F1: "Eu tive uma reunião com o [Flavio] Briatore na Inglaterra lá na Benetton, na época. Fim de 1996. Ganhei nove provas das 11 e nas outras duas o meu carro quebrou (na F-Renault). Então ali eu tinha bastante proposta em cima da mesa. Eu tinha proposta do Briatore para fazer um contrato longo com ele e eu tinha uma proposta da Beta, fábrica de ferramentas da Itália, para fazer uma equipe direto na Fórmula 3000."

"Até o meu pai achou que seria uma boa eu ir direto para a F3000, mas eu recebi uma proposta da Renault para ir correr na Fórmula 3 Inglesa, pela equipe oficial deles. Então eu tinha essas três propostas. Talvez o Briatore fosse excelente porque foi a mesma proposta que o [Mark] Webber pegou um ano depois. Todos os pilotos que ele (Briatore) administrou foram para a F1 e andaram em equipes muito boas, mas ele foi um pouco arrogante na entrevista comigo."

"E a Renault estava me dando tudo, ia ser o primeiro piloto, ir para a Inglaterra, o campeonato inglês era mais forte, então eu decidi pelo campeonato inglês. E a Renault nunca tinha ganho nada. Eu falei: 'Pô, se eu ganhar corrida com o motor da Renault, eu vou estar fazendo o meu nome'."

Questionado sobre o episódio com Briatore, Bernoldi explicou: "Foi a primeira visita em que eu fui numa equipe de F1. Então eu tinha 17 anos, tinha ganho o campeonato de Fórmula Renault Europeu e quem me levou na entrevista foi o Cesare Fiore, diretor da Ferrari durante anos."

"Foi ele que me levou, porque ele estava trabalhando na Ligier, que era do Briatore. Ele me levou lá e falou: 'O Briatore quer você, o que você fez neste ano a gente realmente nunca tinha visto antes'. E eu também achei que fui bem. Ganhei nove provas, alguma coisa certa eu fiz... Aí eu cheguei lá e, quando eu estava entrando na sala, saiu o [Jean] Alesi. Então imagina... Cheguei lá uma criança, 17 anos, adolescente, com o Alesi saindo da sala e eu entrando."

"Aí o Briatore falou para mim: 'Olha, você tem aqui uma proposta de oito anos. Se você andar do jeito que você andou neste ano, no ano que vem você vai estar na F1. Se você não andar bem, a gente vai investigar o porquê. O contrato é esse'. Foi mais ou menos assim".

O fator Williams

Bernoldi explicou: "Eu tinha a proposta da Renault, para um campeonato mais forte. A Renault estava com a Benetton e com a Williams. E, na época, o diretor esportivo da Renault na F1 tinha acenado que, se eu andasse bem com a equipe deles, eles me encaminhariam para a Williams."

"Então eu acabei escolhendo a F3 Inglesa, achei o campeonato mais forte e eu queria ser campeão inglês de F3. Era uma coisa que eu sempre quis, mas acabei jogando fora o campeonato, de um jeito que me arrependo até 'o último'. Foi no ano seguinte (1998). No primeiro ano (1997) em que eu fui para a F3 Inglesa, comecei andando bem. Na primeira corrida, em Donington Park (realizada no fim de março daquele ano), tinha Mark Webber, tinha 'n' pilotos bons."

"Eu errei a largada e cheguei em terceiro. E, depois dessa prova, eu tava indo para o aeroporto porque eu tinha patrocínio da Petrobras. Eu tinha que fazer um evento da Petrobras no Brasil. De publicidade, tinha que ir numa reunião. Quando eu tava indo para o aeroporto, me ligaram da Austrália, da F1: 'Parabéns pela pole position, a vitória vai vir daqui a pouco. Espera que eu tenho uma pessoa que quer falar com você'. Era o Frank Williams."

"E ele falou: 'A gente vem acompanhando a tua carreira. Se você continuar andando assim, você vai guiar meu carro'. Beleza, tudo ótimo, estava indo tudo bem. Fui para o Brasil, estava em Curitiba e saí para ir numa festa com o meu tio. Ele estava dirigindo e bateu o carro. E eu fiquei em coma."

A ocultação do coma

"Eu fiquei três dias em coma e foi uma situação bem complicada, porque eu não podia falar para a equipe o que tinha acontecido. Porque o médico tinha falado para o meu pai que eu estava em coma, então provavelmente nunca mais ia poder correr, não ia poder mais fazer esporte profissionalmente. Então a gente não falou [para a equipe]. Eu andava a cavalo e eles sabiam que eu gostava, e a gente falou: 'Caí de cavalo, machuquei o braço e não posso ir'."

"Faltei a primeira corrida, não botaram ninguém no meu lugar. Faltei a segunda corrida, também não botaram ninguém no meu lugar. Eu não tinha condição. Depois que eu acordei [do coma], eu dormia vinte horas por dia. Tomava remédio gardenal, eu não podia guiar um carro de corrida. Mas eu tive que voltar. Quando eu cheguei lá para andar na Inglaterra. No primeiro treino, eu tinha meio que aquelas manhas do kart...".

"Como eu andava bem e tinha feito a pole na primeira corrida, eu não deixava o cara andar atrás de mim. Era meio manhoso assim: 'O cara quer andar atrás de mim para pegar a minha referência'. Eu não deixava, tirava o pé. Coisa de kartista de São Paulo".

"Eu me lembro que eu voltei a andar e era em Brands Hatch. Eu olhei no espelho e era o Webber que estava atrás de mim. Ele tinha sido sétimo na primeira corrida e eu tinha quase ganho. Pensei: 'Ah, pode deixar... Não vai acontecer nada, já vou sumir'. Só que eu era tão lento em função do acidente que eu tive e dos remédios que eu tava tomando, que quando deu duas curvas e ele me passou, parecia que ele tava a mil por hora e eu estava a dez."

"Eu não conseguia guiar o carro. Eu estava muito ruim, então fiquei andando mal por vários meses, tomando medicamento. E aí eu perdi tudo conquistado na F-Renault e na primeira corrida. Perdi tudo isso e estava quase sendo mandado embora, porque a Renault não entendia: 'Por que você não está andando bem? O que aconteceu? Você caiu do cavalo e machucou o braço? Por que você não anda bem?'. E eu não sabia falar."

"Eu sabia que eu tava correndo um risco. O neurocirurgião que me atendeu no Brasil falou: 'Se fizerem uma tomografia e tirarem o teu sangue, você não vai correr. Eles não vão deixar você correr'. Então era tudo meio que dando um jeitinho brasileiro."

"Só que era difícil, porque, tomando os remédios que eu tomava, eu não conseguia andar bem. Chegou no Marlboro Masters, em Zandvoort, e eu fazia uns erros assim... Largava em 10º e chegava em 14º, só que eu fazia a volta mais rápida da corrida."

O adeus aos remédios

"Coisas que não tinham sentido, porque eu não conseguia manter a concentração. Depois do Marlboro Masters, falei: 'Chega, não vou mais tomar remédio'. Joguei tudo no lixo, liguei para os meus pais e falei: 'Olha, não vou mais tomar remédio'. Eles quiseram que eu voltasse [para o Brasil], que eu parasse de correr. Duas semanas depois que eu parei de tomar remédio, eu tinha a próxima corrida, só que eu tinha falado que eu não ia continuar correndo", seguiu Bernoldi.

"Fui e fiz a pole. Eu acho que realmente o remédio estava fazendo muito mal para mim. Fiz a pole e cheguei em segundo. Na corrida seguinte, que foi em Spa-Francorchamps, na primeira vez que eu fui a Spa na vida, juntou a F3 Alemã, Francesa, Italiana, e eu ganhei a corrida. Fui o cara que mais fez poles nas últimas cinco corridas do ano, então a Renault renovou comigo para o ano seguinte. Fui para Macau e cheguei em terceiro, fui pódio no meu primeiro GP lá."

"Nessas corridas assim que eram mais difíceis... Digamos, quando a gente foi para Spa e quando a gente foi para Macau, era eu e o Webber. Em Spa eu ganhei e ele fez terceiro, em Macau eu cheguei em terceiro e ele fez quarto. Com a Renault renovando, eu comecei o ano (seguinte) ganhando tudo. Acho que eram oito provas e eu tinha ganho seis já. E tinha o dobro de pontos do segundo colocado. E na Paul Stewart corriam o [Luciano] Burti e o [Mario] Haberfeld, brasileiros."

A rivalidade com Haberfeld

"A Paul Stewart era uma equipe que estava melhor acertada que a gente, então, no meio do ano, eles começaram a melhorar. Eu não conseguia mais fazer a pole. E eu estava meio que sob pressão, porque eu queria provar que eu era o mesmo cara de antes do coma. Porque eu tinha isso na minha cabeça, não fiquei o mesmo, não andava como antes. Eu ganhava tudo antes, então eu sempre tive isso na cabeça. Então ali comecei a fazer muito erro e esse foi o arrependimento meu."

"Porque eu joguei duas corridas fora tentando chegar num cara que não precisava. Eu estava em segundo e o Haberfeld em quarto. Uma vez, eu estava tentando chegar no [Darren] Manning, que estava atrás no campeonato. Começou a chuviscar e ele tirava o pé numa curva, eu via porque saía labareda do escape dele, e eu continuava com o pé embaixo. Em vez de eu tirar o pé para chegar em segundo e abrir mais no campeonato, não, acabei indo para o mato."

"Então comecei a fazer esses erros, que me custaram muito. A Renault me chamou e falou: 'Se você chegar em quinto em todas as corridas até o fim do ano, não importa quem ganhe todas, você é campeão'. E eu tinha essa pressão, falei: 'Não, que chegar em quinto... Vou ganhar todas'. Foi aí que eu perdi o campeonato. Inacreditável isso. Eu não perderia para ele (Haberfeld) nem no jogo de xadrez, mas eu perdi. Em 1998".

"Aí fui segundo no campeonato, realmente foi feio, uma vergonha para mim. E fui segundo no Marlboro Masters. Ganhei a primeira prova, só que um cara estourou motor na eliminatória, então o tempo da minha corrida foi mais lento que da segunda bateria, então larguei em segundo na final."

"Não consegui passar o David Saelens na largada e ele tinha um acerto com que ele conseguia andar mais que eu na reta, era no Zandvoort pequeno, difícil de passar. Ou passava na reta ou não passava. Eu tava em segundo e para tentar passar eu tinha que dar uma arriscada."

"Tinha que bater e ver quem sai na frente. Só que quem tava em terceiro era o Haberfeld. Eu falei: 'Esse cara tá ganhado de mim no inglês assim: eu bato e ele ganha, eu bato e ele ganha. Se eu errar... Não vou dar um Marlboro Masters para ele. Então eu fiquei em segundo. Daí, no fim do ano, eu tinha várias propostas na mesa", completou Bernoldi, que seria piloto de testes da Sauber na F1 em 1999 e 2000, antes de correr pela Arrows nas duas temporadas seguintes.

Bernoldi e cia: relembre todos os pilotos brasileiros da história da Fórmula 1

Chico Landi - de 1951 a 1956 - 6 corridas
Gino Bianco - 1952 - 4 corridas
Hermano da Silva Ramos - 1956 e 1957 - 7 corridas
Fritz d'Orey (#40) - 1959 - 3 corridas
Emerson Fittipaldi - de 1970 a 1980 - 144 corridas, 2 títulos (1972-1974) e 14 vitórias
Wilson Fittipaldi - de 1972 a 1975 - 35 corridas
José Carlos Pace - de 1972 a 1977 - 72 corridas - 1 vitória
Luiz Pereira Bueno - 1973 - 1 corrida
Ingo Hoffmann - 1976 e 1977 - 3 corridas
Alex Dias Ribeiro - de 1976 a 1979 - 10 corridas
Nelson Piquet - de 1978 a 1991 - 204 corridas, 3 títulos (1981, 1983 e 1987), 23 vitórias
Chico Serra - de 1981 a 1983 - 18 corridas
Raul Boesel - de 1982 a 1983 - 23 corridas
Roberto Moreno - de 1982 a 1995 - 42  corridas
Ayrton Senna - de 1984 a 1994 - 3 títulos (1988, 1990 e 1991) 161 corridas, 41 vitórias
Mauricio Gugelmin - de 1988 a 1992 - 74 corridas
Christian Fittipaldi - de 1992 a 1994 - 40 corridas
Rubens Barrichello - de 1993 a 2011 - 324 corridas - 11 vitórias
Pedro Paulo Diniz - de 1995 a 2000 - 98 corridas
Ricardo Rosset - de 1996 a 1998 - 26 corridas
Tarso Marques - de 1996 a 2001 - 24 corridas
Ricardo Zonta - de 1999 a 2005 - 36 corridas
Luciano Burti - 2000 e 2001 - 15 corridas
Enrique Bernoldi - de 2001 a 2002 - 28 corridas
Felipe Massa - de 2002 a 2017 - 269 corridas - 11 vitórias
Cristiano da Matta - 2003 e 2004 - 28 corridas
Antonio Pizzonia - de 2003 a 2005 - 20 corridas
Nelsinho Piquet - 2008 e 2009 - 28 corridas
Bruno Senna - de 2010 a 2012 - 46 corridas
Lucas di Grassi - 2010 - 18 corridas
Felipe Nasr - 2015 e 2016 - 39 corridas
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