Era para ser mais um fim de semana normal para a F-1. Depois de sete etapas disputadas, Michael Schumacher estava disparado na frente, com quatro vitórias e 12 pontos de vantagem para David Coulthard, da McLaren, seu rival mais próximo.
Entre os brasileiros, a fase não era das melhores. Esperança maior do país, Rubens Barrichello tinha menos da metade dos pontos do companheiro, havia abandonado o GP do Brasil logo na primeira volta, mas acumulava cinco pódios e estava estagnado em terceiro lugar no campeonato, longe do segundo e do quarto colocados.
Luciano Burti, por sua vez, vivia um pesadelo: depois de quatro corridas sem resultados pela Jaguar, foi trocado por Pedro de la Rosa e se viu tendo de completar a temporada (no fim, isso acabou nem acontecendo) pela decadente Prost, substituíndo o argentino Gastón Mazzacane.
Mais no fundo no grid, o estreante Enrique Bernoldi sofria com a falta de confiabilidade da Arrows e a própria falta de experiência, ganhando notoriedade ao segurar legalmente (afinal, era uma disputa de posição) Coulthard durante um bom tempo no GP de Mônaco, ganhando um xingamento do então chefe da McLaren, Ron Dennis.
Ao seu lado na "rabeira", Tarso Marques seguia como tutor do estreante Fernando Alonso na fraca Minardi, voltando a competir na categoria após três anos de ausência e uma experiência mal-sucedida na CART, uma das divisões geradas com o racha da Fórmula Indy. Do lado de fora, depois de deixar a BAR, Ricardo Zonta era o terceiro piloto da Jordan, e só competiria caso um dos dois titulares, Jarno Trulli e Heinz-Harald Frentzen, enfrentassem problemas.
De repente, éramos cinco
O fim de semana em Montreal começou como qualquer outro. Treinos normais, sem problemas, com um incomum domínio da McLaren. Mika Hakkinen liderava Coulthard e Eddie Irvine colocava a Jaguar em terceiro, à frente de Barrichello, com Schumacher apenas em 11°. Mas a nona posição acabou ganhando a maior importância do dia.
Em atrito com a Jordan, Frentzen cometeu um erro na sessão e discutiu pela enésima vez com a equipe liderada por Eddie Jordan, que já estava com o alemão entalado na garganta. O resultado acabou sendo a demissão de Frentzen e a entrada de Zonta. À imprensa, a justificativa era que o alemão teria se machucado.
Zonta descreve a situação, ressaltando que já vinha sendo preparado pelo time há algum tempo para a substituição, que isso era uma questão de tempo. "A Jordan já estava tendo problemas com o Frentzen. Em Mônaco, ele havia batido e gerou um desgaste. Durante um treino em Magny-Cours [pista francesa que recebeu a F-1 nos anos 90 e 2000], em que ele foi treinar de jatinho, inclusive, aconteceu um novo atrito e mandaram-no pra casa. O mesmo avião foi me buscar em Mônaco e, a partir de então, me chamaram para testar mais vezes. Deram-me mais valor, para falar a verdade, e, claro, me sentia bem com isso."
"Quando chegou o Canadá, ele estava andando mal e deu uma escapada. Aí a equipe cobrou, eles se desentenderam e mandaram-no embora. Foi quando me avisaram: 'se prepare que amanhã você vai andar'. E foi isso que aconteceu. Claro que foi uma surpresa, pois, quisesse ou não, meu contrato era de piloto reserva e é difícil isso acontecer", conta. Foi quando o automobilismo brasileiro, sem a devida atenção da imprensa mundial e do público brasileiro, que ainda vivia a ressaca pós-Senna, atingiu uma marca nunca antes alcançada: pela primeira vez, cinco pilotos do país disputariam uma prova.
Repercussão contida, amizade fortalecida
"Não deram muita atenção lá fora. No Brasil, sim. O mundo da F-1 notou pouco", recorda Barrichello. "Na época foi meio que uma surpresa, já que o [Ricardo] Zonta entrou para a corrida só no sábado da classificação. Foi bem legal. Formamos praticamente ¼ do grid, e ter cinco brasileiros correndo, sendo todos eles meus amigos foi bem legal", conta Bernoldi, endossado pelo então piloto da Ferrari. "Era um momento legal. A amizade era bacana. Andávamos sempre juntos."
Já Burti e Tarso, envoltos em problemas com suas equipes, as piores do grid, não se mostraram animados na época. "A gente não deu muita bola. É meio comum com pilotos de F-1: você não dá tanta atenção. Hoje em dia, daria mais. O foco é tanto no carro, na equipe, que você se isola um pouco do que acontece em volta. Uma hora tocaram no assunto, reuniram os cinco, tiraram uma foto e foi isso", fala o então piloto da Prost. "Na verdade, foi só uma corrida, tiraram uma foto, a imprensa falou pouco e pronto", resume Marques.
Apesar dos números, a fase não era das melhores
Geralmente, um país ganha muitos pilotos na F-1 quando a fase é boa. Vide a Alemanha, que hoje possui seis pilotos no grid, um na reserva, e detém destaque no cenário há quase 20 anos, com o "boom" de Michael Schumacher e, na sequência, Sebastian Vettel. Em 2001, a situação era bem diferente.
"Eu diria que, fora o Rubinho, minha situação era a melhor. A Jordan era uma equipe que tinha carro para andar entre os seis", conta Zonta, que, mesmo fora do grid no começo de 2001, integrava o unido grupo dos brasileiros. "A amizade era sempre boa. Eu sou assim, muito aberto. Mas cada um tinha o seu compromisso, então não sobrava muito tempo para curtir. Mas eu sempre os convidava para jantar em meu motorhome", lembra Rubens. "Agora, não dá para comparar com momento da Alemanha atual. Somente eu tinha um carro competitivo, enquanto muitos alemães brigam pela ponta."
Mas amizade não ganha corridas. E eles lembram de suas agruras. "Aquele ano foi tão difícil que não lembro de nenhum ponto alto. Tenho grande orgulho de ser piloto de F-1. Tenho mesmo. Corrido, largado naquele grid. foi especial demais. Ao mesmo tempo, tecnicamente falando foi tão difícil que não consigo ter muitas boas lembranças", diz Burti.
"É diferente dos alemães, que estavam todos nos melhores carros", concorda Tarso. "A pior situação ali é a melhor de um brasileiro e isso é ruim. Na época, o melhor era o Barrichello e o resto estava tudo em equipes pequenas. Eu nem preciso falar, estava na pior; Bernoldi e Burti corriam em pequenas e o Zonta, em uma média."
Curiosa confusão
Zonta não começou o fim de semana com o pé direito. Curiosamente, acabou se envolvendo em uma pequena confusão com um de seus melhores amigos, mas isso não foi danoso para o fim de semana; só rendeu um episódio que deu uma pitada a mais de graça à marca histórica.
"No treino da manhã do sábado, tinha de passar pneus novos e todos passaram. O Enrique [Bernoldi] já tinha dado sua volta lançada e, quando abri a minha, ele estava indo para os boxes. Na reta que levou para o hairpin, ele deixou dois carros passar e, como achei que ele estava me vendo, fiz a manobra. Quando enfiei ele entrou na curva, nos tocamos e perdi o bico", relata.
Corrida satisfatória para uns, amarga para outros
O grid de largada teve os irmãos Schumacher na frente, com Michael à frente de Ralf. Barrichello saíra em quinto, com Zonta em 12°, Bernoldi em 17°, Burti em 19º e Tarso em 21º e penúltimo.
A prova teve vitória de Ralf, que liderou a primeira dobradinha familiar da história da Fórmula 1, com o irmão em segundo. Nenhum brasileiro terminou nos pontos, mas três deles completaram a corrida bem próximos da zona de pontuação. Se fosse hoje em dia, a situação seria bem diferente.
Zonta, Burti e Tarso foram, na ordem, sétimo, oitavo e nono. "Passei a maior parte da prova com problema de freios, estava brigando com o [Kimi] Raikkonen [então na Sauber], que era quarto. Depois do último pit stop tive de economizar bastante o freio para completar a corrida e cheguei em sétimo. Mas tinha carro para chegar em quinto", lembra Zonta.
"Foi uma prova caótica. Quase deixei o carro morrer e fiz uma largada manual. Quase acertei Jean Alesi em uma freada, o carro saiu da pista e quase superaqueceu por causa da grama. Depois, os pneus criaram 'blisters' e o carro ficou inguiável, melhorando só no fim", comentou Burti na ocasião.
"Fiz uma boa largada e pude ganhar uma ou duas posições, mas não consegui sustentá-las, pois os outros carros me passavam facilmente nas retas", disse Tarso após a prova.
Barrichello, por sua vez, chegou a esboçar uma briga pela vitória, mas rodou por problemas no controle de tração e abandonou ao acertar o muro quando tentava desviar da Williams de Juan-Pablo Montoya, que batera bem à sua frente. "Foi um fim de semana bem pobre para mim", falou o piloto, à época.
Bernoldi, por sua vez, teve problemas de superaquecimento e foi forçado a abandonar: "Fiz uma boa largada, mas algo quebrou no meu radiador quando peguei detritos de outros carros. Parei nos boxes, tiramos a sujeira, mas a temperatura subiu demais e tive de abandonar."
Safra perdida
Em um ponto, todos são unânimes: a safra surgida no Brasil no fim dos anos 90, início da década de 2000, era uma das melhores já vistas no país, mas não vingou por motivos ainda indecifráveis.
"Esta safra era muito boa. Não digo que era a melhor porque não conseguimos títulos como na época do Senna, mas acho que depois que Piquet e Senna passaram pela F-1, a nossa foi a segunda melhor geração", afirma Bernoldi.
"Parte daquela safra foi redirecionada aos Estados Unidos. Muito sofreram com problemas financeiros. Mas a base era forte. Todos venceram campeonatos anteriores à F-1", explica Rubens.
"Ali naquela situação, que tinha o Enrique, o Tarso, o Burti, o Rubinho e eu, eram pilotos que vinham em uma sequência de bons resultados e destaque internacional. Naquele ano, calhou de todos estarem presentes", relembra Zonta. "Talvez tenha sido a última safra com tantos pilotos", conta Burti.
Repetição improvável
Se existe um ponto negativo nesta marca, é a ausência de pilotos para repetir ou superar tal marca. "Sinceramente, eu acho difícil isso se repetir, pois eram bons pilotos e nenhuma vaga ali era comprada, como anda acontecendo hoje. Havia o talento", conta Tarso. Zonta, por sua vez, é mais duro: "Hoje em dia eu acho difícil isso se repetir, pois não tem essa perspectiva de piloto chegando e existe a chance dos que estão lá irem embora. Se bobear podemos ter até um intervalo."
Bernoldi já não acredita em um hiato de pilotos brasileiros no grid, mas concorda que será difícil isso se repetir por enquanto e mantém a esperança. "Não vejo isso acontecendo em um futuro muito próximo, mas torço muito para que aconteça. É um trabalho que tem que começar na base, mas acho que uma geração de pilotos fortes na F-1 também ajuda a fortalecer o automobilismo de base no Brasil."
Barrichello é mais sucinto: "Não vejo isso acontecendo, pelo menos por enquanto. Atualmente, temos poucos pilotos ocupando espaço em categorias de acesso". Já Burti dá uma ponta de esperança, mas exalta que, igual sua geração, não existirá outra. "Não acho que acabou. tem pilotos bons aí vindo. Felipe Nasr é um nome que ouço muito. Tem piloto bom por aí e vai ter sempre. Agora, ter cinco pilotos bons como naquele ano, isso não deve se repetir"
Memórias e números
Por fim, ficam as lembranças: "Dá orgulho de participar da F-1 com ou sem recorde. Lembro que juntamos os cinco no caminhão a gente brincou. Foi legal. É um número só no fundo. Não me prendo a estatísticas", diz Burti, que correu como titular até o GP da Bélgica, quando sofreu um grave acidente e se afastou, ocupando o cargo de piloto de testes da Ferrari por três temporadas.
"Achei legal. Só o fato de estar lá é bacana", fala Tarso, que cumpriu a temporada até o fim e nunca mais voltou, mas é lembrado por Fernando Alonso como seu grande professor. "O recorde foi uma coincidência, mas fiquei orgulhoso, sim, em fazer parte desta história e de ter sido piloto de F-1", considera Bernoldi, que sucumbiu junto com a Arrows no meio da temporada de 2002, cumprindo mais dois anos como test-driver da BAR até desistir de vez da F-1.
"O macacão da Jordan que usei naquele dia e o de todas as outras equipes estão carinhosamente pendurados na parede de minha sala de troféus. Pode não ter acontecido do jeito que desejei, mas foi um sonho que realizei e tenho orgulho disso. Devo muita coisa à F-1", revela Zonta, que, dos cinco, teve a carreira mais bem-sucedida fora da categoria máxima do automobilismo, com títulos na F-3000, World Series e no FIA GT, além de um terceiro lugar nas 24 Horas de Le Mans e vitórias na Grand Am. Depois daquela prova, o paranaense disputou mais uma prova pela Jordan e foi para a Toyota, onde teve uma sólida carreira de piloto de testes e participou de mais cinco GPs, antes de encerrar seu relacionamento com a categoria pela Renault, em 2007.
Único dos cinco ainda em atividade na F-1, Barrichello goza do prestígio de ser o competidor com mais largadas na história. O ano de 2001 pode ter sido difícil, longe do lugar mais alto do pódio, mas o futuro reservava boas novidades: ele venceria mais dez vezes, seria vice-campeão em duas ocasiões e acumularia dezenas de poles e pódios. Tudo bem, comeu o pão que o diabo amassou e quase ficou de fora, mas deu a volta por cima com a garra que lhe é característica. E sentencia: "Independente do que acontecer, o piloto brasileiro é e sempre será bem cotado."