Análise

As regras por trás do acordo da Ferrari com a FIA que chocou os rivais

Enquanto o mundo da F1 foi pego de surpresa com o anúncio de um "acordo" entre FIA e Ferrari, a base legal para isso existe nos documentos jurídicos do órgão

Laurent Mekies, Sporting Director, Ferrari, on the pit wall

Foto de: Mark Sutton / Motorsport Images

A semana passada fechou com uma bomba, após o anúncio da FIA de que havia concluído uma investigação sobre a unidade de potência da Ferrari do ano passado e a decisão surpreendeu e chocou equipes, imprensa e fãs - e isso tem pouco a ver com o uso da palavra "acordo". A compreensão geral é de que houve algum tipo de troca entre as partes, que permitiu à Ferrari escapar de sanções.

Além disso, o conceito de uma investigação acontecendo por trás dos panos, sem uma notificação formal ou anúncio por parte da FIA, não caiu muito bem entre todos. Nós geralmente esperamos que as investigações sejam grandiosas, e conduzidas com a presença da imprensa na sala, através da Corte Internacional da FIA ou a Corte Internacional de Apelos.

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Geralmente os procedimentos são iniciados com uma decisão dos comissários tomada em um final de semana de Grande Prêmio, como uma exclusão ou um protesto submetido por uma equipe - algo que dificilmente passaria em branco. As sete equipes que não usam motores Ferrari deixaram suas frustrações pela falta de comunicação claras em um comunicado divulgado hoje.

No comunicado, eles dizem que "um órgão regulador do esporte internacional tem a resposabilidade de agir com os maiores padrões de governança, integridade e transparência. Após meses de investigações realizadas pela FIA, feitas apenas após preocupações levantadas pelas outras equipes, nos opomos à decisão da FIA de fazer um acordo secreto com a Ferrari para encerrar esse assunto".

"Em conclusão, declaramos publicamente nosso compromisso em conjunto para a liberação dessas informações".

Então por que tudo isso aconteceu com tanto segredo? O procedimento não foi conduzido de modo comum, mas, de fato, é descrito no próprio documento de regras judiciais e disciplinares da FIA. O documento explica em detalhes como que uma investigação pode ser conduzida em sigilo como um passo inicial antes da FIA optar por desistir ou dar sequência, levando o assunto para a Corte Internacional como um processo mais formal.

A Corte foi usada, por exemplo, quando a Mercedes e a Pirelli foram os objetos de uma investigação sobre o teste "secreto" de pneus em Barcelona, realizado após protestos submetidos no GP de Mônaco por Ferrari e Red Bull.

Nico Rosberg, Mercedes AMG F1 W04

Nico Rosberg, Mercedes AMG F1 W04

Photo by: Emily Davenport / Motorsport Images

O assunto foi parar na CI. Mercedes e Pirelli foram repreendidas, e a equipe foi proibida de participar de um teste de jovens pilotos que seria realizado em Silverstone. No caso atual, a FIA optou por não prosseguir para a CI - por razões que desconhecemos. Isso se deu porque a confidencialidade é peça chave do processo, como será explicado na sequência.

O atual procedimento legal da FIA, baseado em torno da CI, vem de março de 2010, votado em um encontro do Conselho Mundial de Esporte a Motor no Bahrein. Todt apoiou um novo sistema disciplinar que, nas palavras da FIA, iriam "garantir a separação entre a parte de acusação e o órgão julgador".

Um sistema foi introduzido naquela temporada de forma transitória. Ele foi usado no infame "Fernando is faster than you", caso das ordens de equipe da Ferrari. Um modelo mais permanente foi desenvolvido naquele ano e terminou com a criação de um novo órgão, a CI, onde os casos seriam ouvidos ao invés de ir para o Conselho Mundial de Esporte a Motor. Os detalhes foram publicados em novembro de 2010, na nova versão das regras judiciais e disciplinares.

O capítulo chamado "Investigações Disciplinares e Acusações" explica como que uma investigação pode ser realizada. Ela começa definindo o que é a acusação, destacando que a função é exercida pelo Presidente da FIA - atualmente Jean Todt - a não ser que exista um conflito de interesse que impeça sua participação.

A FIA destaca: "A acusação pode, por sua própria iniciativa ou pelo pedido de alguma parte interessada, conduzir uma investigação sobre ações ou pessoas sob a jurisdição da FIA e suspeitos de ter cometido quaisquer ofensas detalhadas no Artigo 8.2". Este artigo em particular contem uma longa lista de possíveis ofensas, mas há uma básica que diz "quebrar os estatutos e regulamentos da FIA".

Podium: first place Fernando Alonso, Ferrari, second place Felipe Massa

Podium: first place Fernando Alonso, Ferrari, second place Felipe Massa

Photo by: Sutton Images

Apesar da investigação ser realizada em privado, os detalhes dos questionamentos devem ser registrados. "Qualquer entrevista deve ser gravada em áudio ou em vídeo ou em forma de transcrição, que deve conter data e assinada pelo entrevistado e a acusação. Se uma pessoa se recusa a ser questionada, a acusação deve registrar o fato por escrito".

Na conclusão da investigação, a FIA tem duas saídas - proceder com o caso, levando o mesmo à Corte Internacional, ou "encerrar o assunto". Entretanto, há uma terceira possibilidade, que foi a usada pela FIA nesta ocasião: "A acusação pode também chegar a um acordo para encerrar o processo".

No documento em questão, isso é seguido por uma extensa seção em imunidade para os envolvidos na investigação. Não sabemos se isso se aplica ao caso da Ferrari - a palavra não foi usada na declaração da FIA divulgada na última semana - mas, mesmo assim, vale destacar o que parte desta seção diz:

"A imunidade garantida pela acusação, seja parcial ou total, é sujeita às condições acumulativas que seguem:

a) Cooperar com a FIA de boa fé, o que significa dizer toda a verdade e não destruir, falsificar ou esconder informações úteis ou evidências;

b) Fornecer à FIA cooperação genuína, total e permanente durante toda a investigação, o que envolve em particular: dar repetidas vezes o testemunho caso seja solicitado pela FIA e permanecer à disposição da FIA para responder rapidamente cada questão que tiver".

Vale notar que, caso a imunidade seja garantida, pode ser revogada caso seja descoberto que o recipiente não estiver falando a verdade.

Jean Todt, President, FIA

Jean Todt, President, FIA

Photo by: FIA

A palavra "imunidade" não foi mencionada no comunicado da semana passada, mas a construção textual certamente sugere uma cooperação positiva, e talvez dá a impressão de que a Ferrari tenha realmente mostrado algumas brechas que podem ser discutidas, junto com uma curiosa referência à equipe italiana colaborando com pesquisas futuras sobre emissões e sustentabilidade.

O parágrafo final dessa seção de regras judiciais é crucial, e explica porque no comunicado sobre a Ferrari a FIA também afirma que "as especificidades do acordo ficarão entre as partes".

Esse é o ponto-chave da questão. As regras dizem: "A acusação e todas as pessoas envolvidas na investigação têm uma obrigação de manter a confidencialidade em relação à terceiras não interessadas na investigação. Mesmo assim, a acusação pode tornar pública sua decisão de conduzir uma investigação disciplinar e os resultados desta".

A primeira frase sugere uma questão legal interessante. As sete equipes da F1 que não usam motores da Ferrari se encaixam na definição de "terceiras não interessadas na investigação"? Tente dizer a disso a Toto Wolff, Christian Horner e a qualquer outro que teve seus carros derrotados por um SF90 em alguma das corridas de 2019.

Na segunda frase, o uso da palavra "pode" sugere que a FIA não tinha uma obrigação legal de anunciar ao mundo na semana passada que a investigação havia sido concluída. Na verdade, não tinham obrigação nem de avisar que eles haviam realizado uma.

Apesar disso, também diz que a FIA poderia ter anunciado anteriormente que uma investigação estava em progresso, algo que optaram por não fazer. Fica claro para nós que, ao não dar nenhum detalhe, a FIA usa esse parágrafo como a razão para esta atitude.

Mas ainda assim temos exemplos intrigantes de investigações que não foram levadas à CI e, mesmo assim, a FIA nos forneceu uma explicação relativamente detalhada dos procedimentos. Em 2016, Sebastian Vettel se envolveu em grandes problemas após fazer comentários negativos pelo rádio sobre Charlie Whiting no GP do México.

Após uma investigação, a FIA liberou uma declaração afirmando que Vettel havia pedido desculpas e prometido que esse comportamento não se repetiria novamente. A FIA disse: "devido à essa sincera desculpa e promessa, o Presidente da FIA decidiu, de forma excepcional, não levar essa ação disciplinar contra o Sr. Vettel à Corte Internacional da FIA".

Menos de um ano depois, Vettel foi alvo de nova investigação, dessa vez após seu incidente com Lewis Hamilton durante o safety car no GP do Azerbaijão.

Lewis Hamilton, Mercedes AMG F1 W08, Sebastian Vettel, Ferrari SF70H

Lewis Hamilton, Mercedes AMG F1 W08, Sebastian Vettel, Ferrari SF70H

Photo by: Sutton Images

Como explicado pela FIA posteriormente em um enorme comunicado, o alemão pediu desculpas, admitiu sua culpa e concordou em fazer serviços comunitários na forma de "atividades educacionais" em categorias de base.

O comunicado, que também declarou quem estava presente durante a investigação, diz: "A FIA registra esse comprometimento, as desculpas feitas por Sebastian Vettel e a garantia de fazer suas desculpas de modo público. A FIA também registra que a Scuderia Ferrari está de acordo com os valores e objetivos da FIA. Devido a essas questões, o presidente da FIA, Jean Todt, decidiu nesta ocasião que o assunto deve ser encerrado".

"Mesmo assim, notando a gravidade da ofensa e suas consequências negativas em potencial, o presidente da FIA, Todt, deixa claro que caso esse comportamento se repita, o caso será levado imediatamente à Corte Internacional da FIA para investigação".

Esses são dois casos em que a FIA forneceu extensos detalhes sobre o que foi discutido, e deixou claro as razões para não levar o caso à CI. Uma diferença entre os casos de Vettel e o atual é a falta da palavra "acordo" nos comunicados da FIA sobre o tetracampeão.

Pedidos de desculpas e serviço comunitário para encerrar o caso e evitar uma punição mais séria é a impressão de fica do acordo. Porém, o uso da palavra "acordo" tem ramificações legais particulares, e não necessariamente significa que a Ferrari tenha admitido culpa, o que Vettel claramente fez quando pediu desculpas.

Vale notar também que na seção das regras que fala sobre confidencialidade não há nada especificando que ele vem a partir de um acordo - então essa diferença não explica porque nenhum detalhe foi divulgado.

Quais são os passos legais que sete equipes bravas tomarão a seguir? E como a FIA responderá? A história está longe de terminar.

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Jean Todt, que hoje é que possui o maior poder do trio, foi diretor de corridas da Ferrari de 1994 a 2007 e CEO entre 2004 e 2009.
Ele foi o primeiro não italiano a ocupar uma vaga tão alta na equipe. Após 12 anos de Peugeot, ele foi recrutado por Luca di Montezemolo para tentar dar um fim ao jejum que vinha desde 1979.
A escolha não poderia ter sido mais certeira. No final de 1995, um convite a Michael Schumacher daria início a um grande período de vitórias, com cinco títulos consecutivos de pilotos e construtores, de 2000 a 2004, além do campeonato de Kimi Raikkonen em 2007, o último da escuderia.
No dia 23 de outubro de 2009, Todt se elegeu presidente da FIA, cargo que ocupa até hoje.
Além de apoiar as mudanças na F1 que devem ser introduzidas em 2021, Todt tem destacado seu trabalho também na tentativa de diminuição de acidentes rodoviários.
Ross Brawn ocupa o cargo de diretor esportivo do Grupo Liberty, detentores dos direitos comerciais da F1, após a saída de Bernie Ecclestone. É o nº2 do organograma da companhia que toma conta da F1.
Atualmente, é o principal nome que está por trás das grandes mudanças dos regulamentos técnicos e esportivos da F1 para 2021.
Sua experiência como chefe de equipe de Schumacher em seu período mais vitorioso, de 2000 a 2004, com cinco títulos consecutivos de pilotos e construtores.
Além do sucesso meteórico da Brawn GP em 2009 o colocam como figura respeitável nas mudanças.
O grego Nikolas Tombazis também vem do ‘casamento perfeito’ entre Schumacher e Ferrari, também vindo da Benetton, em 1997.
Seu cargo na escuderia italiana sempre esteve voltado à parte aerodinâmica, permanecendo na equipe de 1997 a 2003 em uma primeira passagem.
Em 2004 ele foi para a McLaren, retornando à Ferrari em 2006 como diretor de design de 2006 a 2014.
Antes de ocupar o cargo de chefe de monopostos da FIA em 2018, ele teve breve passagem pela Manor.
Ele também está por trás das principais mudanças prometidas pela F1 para o carro de 2021, que promete ajudar  categoria a ter uma competitividade mais próxima entre as equipes.
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