Análise técnica: a infração de Mercedes e Ferrari no GP dos EUA de F1
Especialista técnico do Motorsport.com, Matt Somerfield se juntou ao editor global Jonathan Noble para explicar aspectos minuciosos das desclassificações
A desclassificação de Lewis Hamilton, britânico da Mercedes, e Charles Leclerc, monegasco da Ferrari, do GP dos Estados Unidos de Fórmula 1 representou a primeira vez em que carros foram excluídos de uma prova pelo desgaste da prancha em 22 anos.
Como explicou o Motorsport.com, houve pouquíssimas vezes na história da categoria em que se descobriu que as pranchas se desgastaram demais -- a mais famosa foi a desqualificação do alemão Michael Schumacher, então piloto da Benetton, em Spa-94.
Isso torna ainda mais intrigante o fato de que, em uma área do carro em que as equipes estão muito atentas para que não haja espaço para erros, duas das principais escuderias da F1 tenham 'tropeçado' no mesmo fim de semana.
As explicações sobre como as violações das regras aconteceram parecem ser muito claras, de modo que as duas equipes tiveram que simplesmente aceitar a decisão dos comissários, uma vez que as pranchas estavam muito desgastadas. É o que disse o chefe da Mercedes, Toto Wolff: "Não há espaço de manobra nas regras. Precisamos aceitar isso, aprender e voltar mais fortes".
O que dizem as regras da prancha
A tolerância entre o sucesso e o fracasso em relação à legalidade da prancha é mínima, uma vez que não pode haver mais de 1 mm de desgaste entre uma prancha recém-encaixada e uma que tenha passado por todos os desafios de uma corrida.
Para checar a conformidade com as regras, a FIA (Federação Internacional de Automobilismo) pode medir o desgaste da prancha em quatro orifícios de 50 mm de diâmetro perfurados na superfície em locais específicos designados nos regulamentos.
No caso de Leclerc e Hamilton, foi o furo mais traseiro que falhou no teste. Esse furo deve ser posicionado na linha central do carro entre 825 mm e 1025 mm à frente da linha do eixo traseiro.
Como visto na imagem destacada acima, isso por si só oferece alguma variabilidade quanto à forma como o desgaste pode ocorrer em carros diferentes, já que não há um ponto específico pro furo, ao contrário dos três furos na parte dianteira da prancha.
Os furos feitos na prancha (que, a propósito, não é mais feita de madeira, mas de um material composto) são cercados por peças de titânio embutidas. Com isso, há mais proteção contra o desgaste, o que é rigorosamente regulado no design. Essa é uma área que a FIA vem monitorando de perto com essa nova geração de carros e já apresentou várias diretrizes técnicas em resposta a inconsistências em seu design.
Foto de: Steve Etherington / Motorsport Images
Lewis Hamilton, Mercedes F1 W14, Charles Leclerc, Ferrari SF-23, Max Verstappen, Red Bull Racing RB19, Carlos Sainz, Ferrari SF-23
Um ponto de discussão interessante após as desclassificações foi o fato de a FIA não ter verificado as pranchas de todos os carros. Esse é um procedimento padrão, pois seria impossível para o órgão verificar a conformidade de todos os aspectos de cada carro após cada classificação e corrida. É por isso que ela seleciona elementos aleatórios de cada vez em uma tentativa de verificar a conformidade.
Nessa ocasião, o Red Bull RB19 do holandês Max Verstappen, o SF-23 de Leclerc, o W14 de Hamilton e o McLaren MCL60 do britânico Norris foram os escolhidos para terem suas pranchas verificadas. O jovem inglês e o tricampeão não tiveram quaisquer problemas.
Os pontos sensíveis
A razão técnica para o desgaste excessivo das pranchas é simples de explicar. Os carros estavam correndo muito baixos em relação ao solo, o que os desgastou durante o fim de semana em Austin.
A causa disso gira em torno da escolha da altura de rodagem traseira, algo que as equipes ajustam a cada fim de semana. Mas também pode ser influenciada pela carga de combustível e até mesmo pelo uso do DRS, já que a carga aerodinâmica se altera.
Normalmente, as equipes têm bastante tempo em um fim de semana para colocar a altura da suspensão no ponto ideal, em que a prancha não corra o risco de se desgastar, mas com o carro baixo o suficiente para proporcionar o máximo de desempenho.
No entanto, esse equilíbrio se mostrou mais difícil de administrar nos fins de semana de corridas sprint, pois as equipes têm apenas uma sessão de treinos - em vez das três de um fim de semana normal de F1 - para fixar suas configurações antes da classificação.
No Texas, portanto, todos os cálculos de altura do carro feitos durante essa sessão de treinos. Menos tempo de ajuste e com o agravante da disputa de uma prova adicional, mesmo que curta -- além disso, dois qualis, um para o GP e outro para a sprint.
Foto de: Giorgio Piola
Placa do McLaren MCL36
Além disso, quando os carros estão sob regime de parque fechado (no caso de fim de semana com sprint, do quali de sexta em diante) as equipes não podem verificar o desgaste da prancha com a liberdade que geralmente têm. Vira quase adivinhação...
Já vimos algumas vezes este ano, como no caso da Alpine em Baku, em que as equipes perceberam, após a sprint, que as alturas estavam muito baixas e que havia o risco de a prancha se desgastar muito na corrida principal.
Os carros foram retirados do parque fechado para fazer alterações na altura e largaran do pitlane. Não foi o que Mercedes e Ferrari fizeram. E a Scuderia, aliás, também apontou o clima como um fator que pode ter contribuído para o maior desgaste das pranchas.
Uma intensidade de vento mais forte do que a prevista inicialmente, juntamente com uma mudança de direção, talvez tenha feito com que o carro fosse forçado a 'descer' mais próximo do chão em certas áreas da pista. Isso na comparação entre GP e treinos.
A situação em Austin também se tornou mais complicada devido à natureza ondulada do asfalto, que foi descrita por Verstappen como não estando de acordo com o padrão da F1.
Outro fator em potencial também estaria relacionado aos pneus, pois pode não ser coincidência o fato de que os dois carros que tiveram problemas com a prancha foram aqueles que fizeram longos stints no começo da corrida.
Sabemos que, à medida que os pneus se desgastam, resta menos borracha, o que não apenas reduz a aderência, mas também significa que mais temperatura pode 'escapar'. Isso pode resultar em pressões mais baixas à medida que os pneus se aproximam do fim de sua vida útil, o que tem como consequência uma altura de rodagem mais baixa do carro.
No caso de Hamilton e Leclerc, eles fizeram primeiros stints mais longos com o pneu médio para criar um deslocamento estratégico em relação a Verstappen e Norris no Circuito das Américas. Isso pode ter aberto a porta para o desgaste extra da prancha nesse período da corrida, quando o carro ainda estava bastante carregado de combustível.
Foto de: Zak Mauger / Motorsport Images
George Russell, Mercedes-AMG, em Parc Ferme
Lições aprendidas
Todos esses elementos se juntaram para 'empurrar' a Mercedes e a Ferrari para fora da janela de desgaste tolerada. É o que explicou o diretor de engenharia da Mercedes, Andrew Shovlin: "Infelizmente, essa é uma das armadilhas do formato sprint, em que temos uma única hora antes do parque fechado. E o fato de não termos rodado com uma carga alta de combustível no treino livre contribuiu um desgaste mais alto".
Será interessante ver se nos locais de corrida acidentados as equipes agora alteram seus programas no treino livre para garantir que tenham pelo menos uma simulação com o carro pesado em função do combustível para entender melhor as implicações da altura.
Além disso, as desqualificações de Hamilton e Leclerc provavelmente suscitarão um novo debate sobre se as regras do parque fechado são ou não adequadas para os finais de semana de sprint.
Em meio a conversas sobre uma reformulação do formato das corridas sprint, as regras do parque fechado podem ser alteradas para evitar uma repetição do que aconteceu em Austin.
E, embora a Ferrari e a Mercedes possam se sentir prejudicadas, talvez estejam um pouco aliviadas pelo fato de seus outros pilotos não terem sofrido o mesmo escrutínio, já que as verificações pós-corrida não foram realizadas em todos os carros.
A pergunta que todos estão fazendo agora é: quantos outros carros teriam sido reprovados nas verificações de prancha se a FIA tivesse analisado todos os monopostos no Texas?
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