Engenheiro brasileiro de Raikkonen afirma: "Teria 8 títulos se tivesse nascido 20 anos antes"
Ricardo Penteado trabalhou com o finlandês por dois anos e relata pontos positivos e negativos do campeão mundial de 2007
Único brasileiro a chefiar o departamento de motores de uma montadora da Fórmula 1, Ricardo Penteado deu entrevista exclusiva ao Motorsport.com via live de Instagram e falou sobre um dos pilotos mais icônicos dos últimos anos: Kimi Raikkonen. O engenheiro, que deixou a Renault no fim de 2019 para desenvolver projeto mantido em segredo, trabalhou com o finlandês na Lotus em 2012 e 2013, no retorno do 'Homem de Gelo' à categoria.
"O Raikkonen teria sido oito vezes campeão do mundo se tivesse nascido 20 anos antes", afirmou Penteado sobre o vencedor da temporada 2007 da F1. Entretanto, o engenheiro também apontou algumas 'deficiências' do piloto finlandês. "Se eu tivesse tido o Kimi no meu primeiro ano de F1, eu acho que eu não teria feito carreira", disse o brasileiro, que se formou na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
"Levou várias corridas para eu entender esse comportamento dele muito atípico, mas o cara é muito gente boa. Ele é só bem diferente, o que eu acho legal", ponderou Penteado, destacando a personalidade do 'Homem de Gelo'. Confira a imperdível entrevista abaixo:
"O Raikkonen teria sido oito vezes campeão do mundo se tivesse nascido 20 anos antes. Na época (2012 e 2013), tinha ele e o Romain Grosjean [na Lotus-Renault]. Eu era engenheiro do Kimi e também já era chefe da Renault na época, mas eu 'tocava' o carro do Kimi".
"O F1 é um avião de caça. O piloto tem que estar bem integrado com a máquina. Tem que saber os botões e tem que pilotar bem. O Kimi 'era campeão do mundo de acrobacia'. O tipo de cara que não precisa ter um monte de reloginho."
"O cara (Raikkonen) tem que ter o cronômetro, o giro e velocidade. Ele tem uma capacidade de '3D' e de timing que é absurda. Em termos de talento natural, o bicho tem uma capacidade de noção de espaço, de saber onde está o carro do lado, da frente, de trás... onde ele está 'no tempo'. Quando ele faz uma curva, se ele passou um milésimo de segundo mais rápido do que na volta de antes, aceleração...".
"E o Romain é astronauta. Do lado técnico, como que a aerodinâmica funciona, como é que o escapamento funciona, como é, na curva, a pressão do pneu... Astronauta, sabe? E o F1 é o avião de caça, então você tem que achar o meio-termo nessa história."
Os perrengues com Raikkonen
"E o Kimi... eu tive dificuldade para trabalhar com ele. Juro para você que, se eu tivesse tido o Kimi no meu primeiro ano de F1, eu acho que eu não teria feito carreira. Eu ia falar: 'Meu, eu não sou feito para isso, não dá'. Não dá liga, com ele não dá liga."
"Na primeira vez que ele andou na Renault, a gente botou ele para andar 'escondido' em Valência. Antes de assinar contrato, antes de oficializar, a gente fez um teste sem falar para ninguém em Valência. O cara não foi no dia da instalação, para discutir como é, o que tem que fazer. Ele chega no dia de andar no carro e nem vem no caminhão para falar com a gente. Vai direto para o carro, na garagem. Mas F1 não é só apertar no botão, liga e sai".
"Eu pensei: 'Bom, ele deve ter conversado com o engenheiro dele que fala com ele no rádio e sabe o que ele tem que fazer'. Mas não! Eu falei assim: 'Fala para ele fazer um engine tracking'. E daí ele: 'Não, não sei fazer isso. Depois eu faço'. Aí ele parou na frente da garagem e eu: 'Fala para ele fazer o nível de óleo'. Aí o cara apertou no botão para fazer transferência de óleo. E eu: 'Caraca, o que que é isso, cara...'. E assim foi durante algumas corridas até."
"Em Melbourne, primeira corrida dele (na Lotus). Qualificação. Ele tira o capacete e o engenheiro dele falando, só que ele não estava escutando nada. Ele bota o capacete de volta e fala: 'Ah, a asa dianteira...'. O engenheiro: 'Você não falou nada, não coloquei nada'. E ele: 'Era para ter colocado'. Umas coisas assim... Preparação zero. Aí a gente falava 'faz tal coisa no volante'. Ele não sabia como é que funcionava o volante. Eu fiquei indignado".
"Ele saiu da qualificação e foi para onde a gente trabalha. Um cara pegou o volante e falou: 'Eu vou te explicar como é que é o volante'. Meu, a gente estava na Austrália. Era corrida, não era treino. Como é que o cara não sabe como é que é o volante?!? Fiquei indignado. Mas é o jeito dele de trabalhar. Não é que ele não trabalhe ou seja desleixado, é que ele espera a gente ir atrás dele para falar."
Questionado sobre se Raikkonen de fato seria multicampeão se tivesse nascido antes, Penteado respondeu: "Com certeza. Imbatível". Entretanto, o engenheiro também falou sobre a relação do 'Homem de Gelo' com as questões técnicas do carro: "Ele nem sabe que existe".
"Se você não for atrás dele e falar 'coloquei isso no volante para você fazer tal coisa', não é ele quem vai pegar informação. Mesmo quando você explica, leva um tempo de adaptação. E o cara fez várias corridas de F1 antes de voltar para a gente", ponderou Penteado. Raikkonen estreou em 2001 pela Sauber, correu entre 2002 e 2006 pela McLaren e defendeu a Ferrari entre 2007 e 2009. Depois, competiu no Mundial de Rali e fez provas da NASCAR até voltar à F1 em 2012.
"Na largada, em Melbourne, a gente dá aquela volta de apresentação. Todo piloto sabe que se você chegar com um motor muito quente, você vai perder potência. Cara, o Kimi já saiu queimando pneu... A gente chegou no grid com 160ºC na água. Descemos a válvula de pressão e a válvula abriu, só que a pressão era tão violenta e tão quente que a válvula não liberava suficientemente para a pressão voltar ao normal".
"A FIA (Federação Internacional de Automobilismo) foi ver e reclamar: 'Ricardo, a pressão tá muito alta!'. A gente não pode ficar acima de 4.7 bar. E subiu para 6.5 bar de pressão de água. O motor, ainda bem, era bom para caramba. Ele chegou em sétimo (após largar em 18º), numa baita duma corrida. Marcou ponto, mas a minha parte de adaptação para trabalhar com o Kimi foi difícil. Levou 10 corridas para ele saber que o meu nome é 'Rico' (apelido de Ricardo)."
"Quando ele me chamava, ele virava para o lado e falava assim: 'Ei, engine, engine (motor, em inglês)'. Foi difícil. Só que, para terminar com uma impressão positiva: o cara é muito gente boa também. Várias coisas mostram que o cara tem um caráter muito diferente, mas é muito sangue bom. Por exemplo: teve uma corrida em que ele 'pulou' na zebra, mas ele tem um problema nas costas desde 2003, eu acho, que ele bateu forte."
"Então ele teve esse acidente e na corrida seguinte ele veio no escritório. Ele não apertava a mão de ninguém e foi falar com o engenheiro dele. Não falou comigo e nem com o engenheiro de controle. E sumiu."
"Eu saí para tomar uma água e ele estava na geladeira pegando água para ele também, com um fone. Aí bati no ombro dele e falei assim: 'E aí, como que estão as costas?'. Ele tirou o fone: 'Estão bem, fui numa massagista que deixou as costas 'direito'. Depois já fui para a casa de um amigo meu na Alemanha e a gente foi fazer motocross no meio da floresta, fiz uns pulos de 5 metros e depois a gente fez churrasco'. Outro cara, sabe?".
"Aí percebi que o Kimi não é fechado, chato, ranzinza... não é isso. Só que o cara está lá para trabalhar, ele é profissional, não está lá para fazer amigos, para passar tempo. Ele está lá para trabalhar, para 'tocar', para guiar. Mas, se você for até ele e pedir um pouco do tempo dele, ele dá. Levou várias corridas para eu entender esse comportamento dele muito atípico, mas o cara é muito gente boa. Ele é só bem diferente, o que eu acho legal", completou Penteado.
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